sábado, 25 de março de 2017

A casa


A casa que eu amei foi destroçada
A morte caminha no sossego do jardim
A vida sussurrada na folhagem
Subitamente quebrou-se não é minha

Sophia de Mello Breyner Andresen
Imagem: Casa Andresen (actualmente Jardim Botânico)


Retrato de uma princesa desconhecida





Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino

Sophia de Mello Breyner Andresen

•*¨*•.¸¸  ❤

* Imagem de mulher da tribo Ndebele - África do Sul



quarta-feira, 22 de março de 2017

Ode à água



Se eu fosse chamado
A erigir uma religião
Faria uso da água.

Ir à igreja
Envolveria passar a vau
Com roupas secas, diferentes;

A minha liturgia empregaria
Imagens de encharcar,
Um alagamento de furor e devoção.

E do lado nascente iria erguer
Um copo de água
Em que a luz de qualquer ângulo
Se congregasse sem fim.

Philip Larkin1922-1985
Inglaterra

domingo, 19 de março de 2017

A Primavera

A Terra é mãe eterna. A fecundá-la
passam os ventos, passa o sonho e a dor;
Apodrecem os corpos numa vala,
e desfolham-se as folhas duma flor.


Para que produza, matam-se a cavá-la
A Primavera, o poeta e o cavador
Todos com ânsia, para profundá-la,
todos amando-a, para que dê amor!


Mondam-se os trigos, sob os claros ares;
florescem nas ramadas os fecundos
rebentos; alvorecem os pomares...


E a Terra, a grande mãe alvoraçada,
sente no ventre, remexer, profundos
frutos, de cada beijo, cada enxada!



Afonso Lopes Vieira (século XlX- XX)
Poesias escolhidas
Retirado do livro a «Terra e a Grei»  1956
 para 1ª ano liceal


sábado, 18 de março de 2017

O outro lado das coisas

As palavras são fundantes?
Também desagregam.

O amor cega?
Também revela

O ódio destrói?
Também liberta.

A dúvida paralisa?
Também inspira.

A coragem é altruista?
Também é soberba.

O medo atrapalha?
Também protege.

A vida é tragédia?
Também é gloriosa.

A morte é o termo?
Também é recomeço.


João  Melo
/Auto-Retrato)


Jornalista, escritor e professor universitário Nasceu em Luanda em 1953
Publicou até agora vários livros de poesia e ensaios, 
Membro fundador da União dos Escritores Angolanos, actuou neste orgão como secretário geral e presidente da Comissão Directiva .Actualmente dirige uma agência de comunicação privada

terça-feira, 7 de março de 2017

Libera-me

Livrai-me, Senhor,
De tudo o que for
Vazio de amor.

Que nunca me espere
Quem bem me não quer
(Homem ou mulher).

Livrai-me também
De quem me detém
E graça não tem,

E mais de quem não
Possui nem um grão
De imaginação.

Carlos Queirós
Portugal
5 Abr 1907 // 27 Out 1949

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Carta a Ophélia Queiroz




Ophelinha:
Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa — o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?

Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem.
O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.
Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?

Na sua carta é injusta para comigo, mas compreendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com mágoa, mas, a maioria da gente — homens ou mulheres — escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio óptimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.

Quanto a mim...
O amor passou. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca — nunca, creia — nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lhas atribuísse.
Não sei o que quer que lhe devolva — cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados; como alguma coisa de comovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na infelicidade e na desilusão.
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.
Que isto de «outras afeições» e de «outros caminhos» é consigo, Ophelinha, e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam.
Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.
Fernando
29/XI/1920

Um mimo...☹ ☺ ㋡ ...!

Poemas inconjuros

  A espantosa realidade das coisas É a minha descoberta de todos os dias Cada coisa é o que é . E é difícil explicar a alguém quanto isso me...