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terça-feira, 12 de dezembro de 2017
Os cães velam por mim
Não sai medo da boca dos cães, nem fúria
nem ponta de rancor.
Somente um uivo, um estertor.
Pediam tão pouco; um osso, um resto de carne,
um fingimento de ternura, e nada tiveram,
e nada conquistaram.
Somente o desprezo e a fome,
e a vizinhança ardente de morte, numa berma da estrada,
enquanto seguiam o rasto dos cegos
demandando a promessa de luz das catedrais.
Os cães não sabem nem querem vingar-se
Depressa trocam os sinais de cólera
pela promessa de um afago
e depois rebolam-se na erva como se voltassem
à infância amamentada na sombra dos quintais.
Eu amo os cães e também os gatos,
e só dos homens desconfio e me defendo
por serem os únicos que sonham, olhando o céu
sem nunca deixarem de enterrar no lodo
as raízes mais mesquinhas da ilusão
de poderem ser deuses.
Vêm os cães e põem em em fuga os vultos arqueados
dos que cercam a casa. Sem dó.
Não se pode morder nem matar o que é imaterial.
Os cães, mesmo os de pedra, velam por mim
enquanto eu invento os nomes que hei-de dar
aos temores que me invadem a escrita.
José Jorge Letria
Prosa
(Coração sem abrigo)
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017
Última vontade e testamento de um cão
Escreveu mais de de 30 peças de teatro, e quase todas refletem uma mensagem de luta, heróica, e trágica do homem e que lhe valeram vários Prémio Pulitzer .
Recebeu também o Prémio Nobel da Literatura
O "testamento" que se segue, é uma excepção na obra de O'Neill pelo seu sentimentalismo e senso de humor.
Foi escrito para atenuar o desgosto da sua mulher Carlota, pouco antes da morte, por velhice do seu cachorro, em Dezembro de 1940.
.¸¸.•*•❥ Eu, Silverdene Emblem O'Neill (Blemie para a família e amigos) devido ao peso dos anos e das enfermidades, considerando que o meu fim se aproxima deixo na mente do meu dono, as minhas ùltimas recomendações e testamento. Ele só se aperceberá delas depois da minha morte e desde já lhe peço que as trascreva em minha memória.
Bens materiais não tenho. Os cães são mais sábios que os homens e nao dão grande valor às coisas, não perdem o seu tempo acumulando propriedades nem perdem as suas horas de sono preocupados em arrecadar objectos nem a desejar os que ainda não têm.
Nada tenho de valor para legar, a não ser o meu amor e a minha fé.
Estes deixo-os a todos que nesta vida me amaram:
aos meus donos, que sei. sentirão mais a minha falta;
A Freeman, que foi sempre tão bom para mim;
A Cyn, Roy, Willie e Naomi... se prosseguisse, enumerando os que me amaram, obrigaria o meu dono a escrever um livro.
Peço aos meus donos que nunca me esqueçam, mas que não chorem demais por mim. Causa-me pena pensar que a minha morte seja para eles motivo de dor. Devem lembrar-se que embora nenhum cachorro tenha tido uma vida melhor que a minha ( e devo isso ao amor e cuidado que tiveram comigo) agora estou cego, surdo e alquebrado e até o meu olfacto começa a falhar-me de tal modo que até um coelho pode passar-me pelo focinho e eu não dar por isso, e o meu orgulho e amor-próprio desapareceram, num mar de humilhação.
É como se a vida escarnecesse de mim, por estar a retardar as despedidas.É hora de dizer adeus antes de me tornar um fardo pesado, para mim e para os que me amam. Será uma pena deixá-los, mas não é pena morrer.
Os cães, não temem a morte como os homens. Aceitamo-la como parte da vida e não como algo de estranho e terrível .
Gostaria de partilhar a confiança dos meus parentes dálmatas devotos maometanos que existe um Paraíso onde se é sempre jovem e feliz, onde se passa o tempo perseguindo belas e lânguidas huris com manchas lindas; onde há coelhos «ligeiros» e se contam como as areias do deserto: onde cada hora é hora de comer: onde nas noites mais longas há lareiras, com lenha a arder indefinidamente e um cachorro se pode enrodilhar, piscar para as chamas cochilar e sonhar recordando os velhos tempos na Terra e o amor dos seus donos.
Receio que isso esteja muito além daquilo que mesmo um cachorro como eu possa almejar.
Porém, paz, estou certo que terei para um velho coração, cabeça e corpo cansados, e sono eterno sob a terra que tanto amei.
Talvez até isto seja o melhor.
E por último, tenho um pedido muito importante a fazer:
Certa ocasião ouvi a minha dona a dizer: « Quando Blemie morrer, não quero mais nenhum cachorro. Gosto tanto dele que jamais poderei gostar de outro»
Peço-lhe agora, que por amor a mim, tenha outro cachorro. O contrário seria triste homenagem à minha memória.
O que me deixaria feliz seria o facto de eu ter pertencido à familia e ela nunca mais poder viver sem um cachorro dentro de casa. Nunca tive um espirito mesquinho e ciumento. Sempre acreditei na bondade da maioria dos cachorros. Alguns naturalmente são melhores que os outros mas todo o mundo sabe que não há quem se compare aos dálmatas. Sugiro pois, que o meu sucessor seja também um dálmata.
Dificilmente ele chegará a ser tão nobre, bem educado, atraente e distinto como eu fui nos bons tempos. Porém estou certo que ele se esforçará, para lhes agradar e até comparando os seus defeitos, ele contribuirá para manter bem viva a minha lembrança.
Para ele, deixo a minha coleira, a minha correia, o meu casaco e impermeável, feitos por medida por Hermès de Paris.
É claro que ele não os saberá usar, com a mesma elegância,como a minha ao circular na Place Vêndome em Paris, ou mais tarde, na Park Avenue em Nova Iorque, e despertar os olhares em mim, cheios de admiração; apesar de tudo repito estou convencido que ele , fará tudo, para não parecer um mero vira-latas. e até de certo modo poder comparar-se a mim, E com todos os defeitos que porventura tenha, deixo-lhe aqui os meus votos de que goze da felicidade que sei terá. na minha velha casa.
Uma última palavra de despedida meus queridos donos.
Sempre que visitarem o meu túmulo, murmurem nos seus íntimos, com saudades, mas felizes com a recordação da longa vida, que passamos juntos;
« Aqui jaz alguém que nos amou e a quem nós amamos»
Por mais profundo que seja o meu sono, eu os escutarei e nem todo o poder da morte, pode impedir que o meu espirito agradecido, abane alegremente o rabo .¸¸.•*•❥
Eugene Gladstone O'Neill (Nova Iorque, 16 de Outubro de 1888 – Boston, 27 de Novembro de 1953) foi um dramaturgo anarquista e socialista estadunidense. Recebeu o Nobel de Literatura de 1936 e o Prêmio Pulitzer por várias vezes.
domingo, 20 de março de 2016
Adeus amigos fiéis
A 8 kilómetros de Paris seguindo pela margem do Sena até Asnières-sur-Seine encontra-se um lugar coberto de vegetação. É ali que o rio se abre para uma uma pequena ilha.
Atravessando a ponte que leva a essa ilha encontramos um portão largo e bonito que dá para alamedas sombreadas e terraços floridos com lápidezinhas espalhadas pelo meio .
Chegamos ao Cemitério de cães.
Neste local estão enterrados cerca de 10.000 amigos do homem. E nem todos são cães - há também gatos, galinhas, macacos e até um leão, uma gazela e dois cavalos.
Um dos emblemáticos monumentos é em memória de Barry.
O cão foi esculpido em granito e às suas costas tem uma menina que salvou das neves da montanha.
A lápide diz o seguinte:
"Salvou 40 pessoas pessoas, e morreu ao tentar salvar a quadragésima primeira"
Barry, embalsamado
Barry pertencia aos frades da Ordem de S. Bernardo e durante mais de sete anos da sua vida enfrentou as tempestades de inverno dos Alpes Franceses, na busca de viajantes perdidos ou vencidos pelo frio. Quando os encontrava, aquecia-os com o calor do seu corpo.
Se eles estivessem muito fracos para caminhar, Barry arrastava-os para fora da neve e saía a latir em busca de socorro.
No crepúsculo de um dia de dezembro Barry encontrou um homem perdido na neve. Estonteado pelo frio e vendo o vulto de um animal coberto de gêlo a latir e a saltar para ele, o homem encheu-se de medo.
Tinha consigo uma barra de ferro, com a qual golpeou Barry na cabeça. Mesmo mortalmente ferido Barry arrastou-se até ao mosteiro para informar os frades que havia alguém a precisar de ajuda. Seguindo o rasto do seu sangue, os frades chegaram ao local onde estava o homem que ferira Barry e matara Barry.
O cemitério e um manancial de heróis de 4 patas, e de companheiros insubstituíveis dos seus donos. .
Numa lápide sobre um túmulo lê-se
"Drac, 1941-1953: Fiel companheiro de horas trágicas precioso amigo no exílio.(S.M. Raínha Elizabeth da Grécia, Princesa da Romania."
Mystico, esculpido em pedra, olha para os versos a ele dedicados pelo seu dono, Marcel Leguay (cantor francês do século XIX ) que dizem:
«Mystico, meu bom cão de pêlo áspero e ar vagabundo, nunca saberás, quanto eu te amei.»
Tola Dorian poetisa e escritora (de origem russa mas naturalizada francesa pelo casamento ) deixou a este epitáfio ao seu cão Sappho:
«Sappho, querido e nobre amigo se a tua alma não me acompanhar na longa jornada, não desejo a eternidade».
Três pequenos caniches estão esculpidos em granito, embaixo do qual se lê:
«Queridos amiguinhos, nós que somos jovens choraremos por vocês quando formos velhos"
Outra inscrição «Por Dolly que me salvou de um incêndio eu choro. »
E mais outra que por si mesmo conta uma história:
«Ao meu pêlo de arame querido, ao meu Tito,( amigos e amantes me traíram,) tu meu pequeno camarada, foste o único que correspondeu à minha confiança..
No túmulo de Griff há uma citação de Víctor Hugo:
«O cão é virtude, que não podendo tomar forma humana tomou forma animal»
Frase comum a muitos túmulos a muitas vezes citada por Pascal.:
QUANTO MAIS CONHEÇO OS HOMENS MAIS AMO O MEU CÃO.
Este cemitério para animais existe graças a Marguerite Durand, e Alexandre Dumas, que induziram outros amigos dos animais a abrir subscrições. Contribuiram ricos e pobres grandes e pequenos, e a cidade prontificou-se de imediato a ceder o terreno. Assim nasceu "Lille de Ravageurs "
O cemitério com cerca de um hectar de terreno, pertence a uma sociedade particular e é mantido, através de entradas pagas a quem o visitar e pela venda de lugares para sepulturas..
Nos seus portões, pede-se ao visitante, que não "não pise nas sepulturas, não corte as plantas, não ria alto, nem pratique actos de mau gosto"
A única diferença entre estas sepulturas e as do ser humano, é que nestas não há emblemas religiosos.
A verdadeira grandeza não consiste nos actos de bravura mas também em dedicação quotidiana .
E aqui jazem os que foram, companheiros de grandes e pequenos.
Os seus epitáfios são testemunhas do consolo que souberam oferecer aos seus donos.
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