terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Os cães velam por mim



Não sai medo da boca dos cães, nem fúria
nem ponta de rancor.
Somente um uivo, um estertor.
Pediam tão pouco; um osso, um resto de carne,
um fingimento de ternura, e nada tiveram,
e nada conquistaram.

Somente o desprezo e a fome,
e a vizinhança ardente de morte, numa berma da estrada,
enquanto seguiam o rasto dos cegos
demandando a promessa de luz das catedrais.

Os cães não sabem nem querem vingar-se
Depressa trocam os sinais de cólera
 pela promessa de um afago
e depois rebolam-se na erva como se voltassem
à infância amamentada na sombra dos quintais.

Eu amo os cães e também os gatos,
e só dos homens desconfio e me defendo
por serem os únicos que sonham, olhando o céu
sem nunca deixarem de enterrar no lodo
as raízes mais mesquinhas da ilusão
de poderem ser deuses.

Vêm os cães e põem em em fuga os vultos arqueados
dos que cercam a casa. Sem dó.
Não se pode morder nem matar o que é imaterial.
Os cães, mesmo os de pedra, velam por mim
enquanto eu invento os nomes que hei-de dar
aos temores que me invadem a escrita.

José Jorge Letria
Prosa
(Coração sem abrigo)





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