Quando saí de Angola, levava apenas as sandálias da minha infância (que perdi algures), um álbum de fotografias e as poucas roupas daqueles últimos e olvidáveis dias de Luanda.
Um homem não precisa de muito, quando tem tudo: o
amor de uma mulher, um poema entre os dedos e o rosto da claridade a beijá-lo
por dentro. Não preciso destes papéis velhos. Preciso, sim, de um rio, o mais
antigo, quando o tempo ainda não existia e as aves cantavam entre o cálido
fervor das palmeiras.
Sim, nesse tempo o meu pai era um deus de sol e a minha mãe a estrela mais branca da terra. Os meus irmãos, esses,
eram quatro braços de água e alegria. Cresci tanto, meu Deus!, que já não
reconheço nos cães vadios o latido de memórias distantes. Sou a vírgula, a
última, antes do voltar da página.
Mas, enfim, para aonde vou com isto? Ora.
Pego num papel, e leio: “Contudo amo-te porque não existes, sombra, néctar de
maçã, o mar entre as mãos separando os dias”
Pois... Rasgo-o e deito-o no lixo Aqui fica, com um pedaço de noite. E o Nocturno op 9. No. 2 em E Flat de Chopin.
✿❀✿
Eduardo Bettencourt Pinto nasceu na Gabela, Sul de Angola, em 1954. Viveu em vários países após 1975, residindo actualmente no Canadá. É funcionário estadual, consultor informático e editor da revista literária "Seixo review", na Internet. Escreve para publicações no Canadá, Estados Unidos, Portugal e Brasil. Publicou vários livros de poesia e ficção
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