O passado é sempre um destroço fumegante,
uma sombra que nos persegue,uma pele da nossa pele
que não aceita compromissos ou rupturas.
Irá connosco até ao fim, como as tatuagens
e as cicatrizes,como uma ferida incurável na voz.
O passado desagua no delta das nossas incertezas,
fantasma omnipresente do que deixámos por cumprir.
Lembras-te de mim, neste retrato,tapando o rosto, com medo do vento e com vergonha de ter medo?
Lembras-te de nós, tão longe de casa
a passearmos pelas ruas íngremes de uma cidade, sem nome mas de perfume intenso?
Lembras-te de ti a morrer aos poucos dentro de mim
com a serena indiferença de quem imagina
que tudo é imutável, só porque o queremos imutável?
É isso o passado: o sentimento por trás da imagem,
a recordação colada à fotografia, o aroma de uma despedida que ficou para sempre inconfessada.
Nós passamos, mas o passado fica, teimosamente,
a lembrar-nos que ainda temos muito que passar,
sorriso asfixiado contra um vidro fosco
onde os pássaros embatem e morrem, arquejantes,
vitimados pela armadilha do fulgor do sol.
José Jorge Letria
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