O meu Pai Natal angolano foi sempre um homem pobre.
. Vinha de noite, muito tarde, entorpecido e cansado. Deixava um carrinho, e às vezes rebuçados, nas sandálias da minha infância.
Não trazia o pesado casaco nem o capuz do Pólo Norte a baloiçar-lhe nos ombros. Vinha de calções e suspensórios vermelhos sobre uma camisa interior branca. Cada passo era como uma onda do mar: cadenciado. Calçava chinelos de borracha e o trenó era uma velha bicicleta, igual a muitas que vi nas picadas do Sul guiadas por homens energéticos e afáveis. Deixava-a encostada ao muro da casa, cheia de pó dos longos e intermináveis caminhos da noite africana.
Eu dormia mal nessas noites antigas. Revolvia-me muito na cama, ansioso, numa vigília que culminava sempre com um rumor de passos. Eram tão leves que pareciam os da «Princesa», a nossa amorosa e fecunda gata.
Levantava-me devagar para não acordar o meu irmão Carlos. A cama rangia, os meus ossos. Invadiam-me o susto e a expectativa de tal modo que todo eu tremia. Espreitava aquela presença surreal suspenso de curiosidade.
Via então o Pai Natal sondar o escuro como um farol alumia a distância. Dos seus olhos corria uma ténue luz de pirilampo. Abaixava-me com cuidado para que não me visse. No entanto, queimava-me por dentro aquela vontade de correr ao seu encontro, abraçá-lo, e pedir-lhe que ficasse um pouco comigo. Precisava tanto que me explicasse por que gostamos de alguém de repente, que milagre acontece dentro de nós, que prisão?
Os rios sinuosos das emoções adejavam no meu peito e asfixiavam-me porque não tinham voz. Eu levava dentro de mim o peso dos dias e a alegria selvagem do amor. A ternura era uma espécie de caos, e eu nem sabia que essa palavra existia. Como poderia explicar o que sentia pela Olga, uma flor em movimento?
Ela era uma menina do meu colégio. Eu morria quando ela estava longe; perto dela todos os momentos se iluminavam. Eu cantava com as minhas mãos porque tudo me parecia música e o mundo um jardim. Desejava tocar-lhe no rosto, abrir os dedos entre os seus cabelos, respirá-los, beijá-los. No recreio, extasiava-me ver como a luz, caída dos mamoeiros, a perseguia por todo o lado como fosse uma borboleta.
Eu gostaria que o Pai Natal me tivesse explicado tudo sobre a solidão e o êxtase. E o que mais tarde aprendi aos trambolhões pela vida fora: que o amor é um sentimento sem barreiras. Tanto é ave como beatitude e incêndio. E que nessa viagem há uma espécie de divindade que nos dignifica e sustém entre o deserto e as cinzas, a arbitrariedade e a melancolia.
Mas eu não podia aproximar-me dele. Se ele me visse, estava certo, nunca mais voltaria. Ficava-me pelo seu vulto, pois, agachado sobre as nossas sandálias. Contentava-me em observar os seus movimentos como numa cena em câmara lenta.
Quando ele se ia embora, silencioso como entrara, eu regressava ao meu reino de sombras.
A cama recebia-me então com o frio de um túnel abandonado. Imóvel e de olhos fechados, escondia a cabeça sob o lençol tentando adormecer.
No último Natal da inocência o Pai Natal não foi tão cuidadoso como nas outras vezes: fez barulho. Todos os seus movimentos demonstravam pressa.
A curiosidade fez-me aventurar um pouco mais. Foi então que lhe vi o rosto.
Já na minha cama, senti uma imensa vontade de chorar. Será que devia acordar o Carlos e dizer-lhe? Agarrei-me à almofada como um náufrago à bóia salvadora. E assim acabei por adormecer.
Pela manhã, à mesa do pequeno-almoço, o carrinho de plástico no colo, vi o meu Pai Natal angolano olhar para mim com os olhos do meu pai.
Eduardo Bettencourt Pinto
Gabela Angola 1954
Palavras no Branco